Luiz Antonio de Assis Brasil

por Marcelo Spalding

O nome é imponente. E a obra, construída com o mesmo cuidado de cada romance, de cada frase, faz jus a tal imponência. Luiz Antônio de Assis Brasil, porto-alegrense de vida inteira, publicou seu primeiro livro em 1976 pela editora gaúcha Movimento. De lá para cá foram quase duas dezenas de romances, alguns com uma dezena de edições, muitos premiados e todos publicados por editoras gaúchas. Além disso, Assis ministra há 25 anos a Oficina de Criação Literária da PUCRS, reconhecida nacionalmente por forjar alguns dos melhores nomes da literatura contemporânea, como Cíntia Moscovich, Daniel Galera, Michel Laub e Amílcar Bettega.

Não por acaso fala-se aqui  no Sul que, em terra de Scliar e Verissimo, Assis Brasil é o mais importante nome do sistema literário gaúcho (aqui sistema entendido na definição de Cândido, autores, editoras e público), pois Assis ao mesmo tempo forma autores, arrebata leitores e fomenta o cambaleante mercado editorial local ao permanecer com suas edições por aqui.

Neste ano, felizmente, sua editora atual, a L&PM, resolveu retribuir essa postura e está republicando alguns títulos da obra do mestre que estavam fora das livrarias há mais de cinco anos. Com isso Videiras de Cristal, a trilogia Um Castelo no Pampa, Bacia das Almas, As Virtudes da Casa, Anais da Província-Boi, O Homem Amoroso, Manhã Transfigurada e Cães da Província ganharão novas edições e voltarão a um catálogo de onde não poderiam ter saído, pois a obra de um autor como Assis Brasil não se mede por um dois títulos, um ou dois prêmios, e sim pelo seu conjunto.

Os romancesManhã Transfigurada e Cães da Província foram os escolhidos para iniciar essa retomada, e poderíamos dizer que ambos representam bem a temática e a estética deste Assis anterior a Um pintor de retratos, publicado em 2001 e que, segundo palavras do próprio autor, é uma virada na sua forma de escrever. O Assis pré-2000, autor desses clássicos da literatura gaúcha que estão sendo republicados, recorre a episódios históricos da sociedade rio-grandense para criticar a organização burguesa e provinciana desta, aproximando-se aquilo que hoje chamamos Nova História. Alguns poderiam dizer que é um olhar contemporâneo do passado, o passado olhado com a lente pós movimento feminista, pós movimentos sociais.

Manhã Transfigurada, por exemplo, narra a história de Camila, uma jovem que se casa por obrigação com um rude sargento local, dono de bela casa em frente à Igreja de Viamão e alguma Terra no Interior. O que nas mãos dos românticos seria uma bela história de amor torna-se, entretanto, uma intrincada disputa de direito canônico, pois o marido, ao descobrir que sua esposa não é mais virgem, pedirá anulação do casamento e prisão domiciliar da esposa enquanto o caso não for decidido pela Igreja, valendo-se de uma lei existente à época, o século XVIII.

A mesquinhez da minúscula cidade, o preconceito social e a opressão às mulheres, especialmente à sua sexualidade, ficam bastante evidente na história, embora devamos considerar que as duas protagonistas, Camila e sua empregada Laurinda, agem como mulheres contemporâneas.

“Camila teve um instante em que sentiu um calor no rosto: o homem descia o olhar perturbado pelo seu pescoço e parava-se no colo, para depois subir aos ombros, para novamente baixar, fixando-se nos peitos. Camila obtinha êxito na sedução, um jogo do qual não conhecia bem as regras, guiada mais pelos ensinos de Laurinda e por aquilo que toda mulher sabe de nascença”.

Cães da Província é do estilo bom e velho romanção, com dois ou três núcleos de personagens, descrições generosas, diálogos mais extensos e conflitos marcados, como crimes, traição e loucura. A loucura, aliás, pode ser considerada o tema central dessa obra que traz Qorpo-Santo como protagonista, o hoje reconhecido dramaturgo que viveu em Porto Alegre no século XIX, “século das luzes”, como ironicamente irá descrever o narrador.

Ironicamente porque o narrador, ao expor os acontecimentos e fatos da época, vai revelando ao leitor contemporâneo o quanto as relações sociais e a própria ciência de então tinham de absurdo e o quanto a aparente loucura de Qorpo-Santo tinha de genialidade, permitindo-nos percebê-lo como um homem a frente do seu tempo numa cidade que não parece a mesma que hoje circulamos. Dessa forma, o narrador em Cães da Província comporta-se como seus contemporâneos ficcionais, enquanto é Qorpo-Santo quem faz a crítica social mais contundente e questiona os valores da época:

“Onde se viu? então acham que podem simplesmente apontar para qualquer cidadão e gritar-lhe na cara que é louco? e quem nos garante que eles é que são os certos? só porque são bem-casados, bem-afamiliados, bem-dormidos, com empreguinhos públicos, julgam-se melhores que os outros?”.

Vale ressaltar que embora os romances de Assis Brasil invariavelmente se passem no Rio Grande do Sul, os conflitos representados são universais, no melhor estilo queroziano. Assim como em Manhã Transfigurada é o papel da mulher que está em discussão, algo com o que o século XX de certa forma conseguiu lidar, em Cães da Província é a loucura e suas nuances o tema central, e este é um conflito que nem o século de Machado, autor do grande O Alienista, e nem o século de Assis conseguiu lidar de forma satisfatória, permanecendo a linha entre a sanidade e a loucura (hoje com nomes pomposos como mania, depressão, bipolaridade, esquizofrenia, etc) muito tênue, e os laudos médicos muito subjetivos.

Também é imporatante perceber que o olhar que temos aos romances dessa primeira fase de Assis Brasil são, de certa forma, transformados pela ficção que o próprio autor apresenta em sua segunda fase, a fase de romances mais concisos e sutis. Ficamos com a impressão de que nos primeiros romances a linguagem era mais acessível ao leitor médio, o que explica o sucesso de vendas de muitos de seus romances, enquanto nos mais recentes a linguagem busca um leitor formado, maduro, como maduro está o próprio escritor. E isso, longe de ser algum tipo de defeito de um ou outro estilo, demonstra apenas que a literatura nos é fértil em possibilidades, e que feliz é aquele escritor capaz de, mesmo em meio a uma carreira tão exitosa, se reinventar.

 

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