Preconceito Lingüístico no Romance Cidade de Deus

por Marcelo Spalding

Talvez já se possa afirmar que a literatura brasileira seja profícua em romances e contos que representam uma classe social desfavorecida, marginalizada, profusão esta que facilmente se justifica quando olhamos a distribuição de renda do país. O Cortiço, de Aluízio Azevedo, é comumente considerado o iniciador do naturalismo brasileiro, mas também Machado de Assis recheia seu Memórias Póstumas de Brás Cubas com personagens desfavorecidas, como D. Plácida e Prudêncio, além de produzir uma contística que em vários momentos aborda a questão social, como no já célebre “Pai contra mãe”.

No século XX, tornou-se capítulo obrigatório nos livros didáticos de literatura o chamado “Romance de 30”, em que “o engajamento, qualquer que fosse o valor tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a tônica dos romancistas” (BOSI, 1994, p. 390). Neste contexto podemos lembrar Graciliano Ramos, que em Vidas Secas eleva uma família de retirantes do Nordeste à condição de protagonistas, Jorge Amado, que com Capitães de Areia elabora uma síntese das utopias comunistas de sua geração com a organização política de um grupo de meninos em situação de rua, e o gaúcho Dyonélio Machado, cujo Os ratos é exemplo paradigmático da representação do pobre no mundo urbanizado e financeiro que já se desenhava nos anos 30.

Já a segunda metade do século XX seria marcada por uma grande esperança no regime democrático – por parte de alguns escritores, na possibilidade de ascensão de governos identificados com o socialismo – e pela grande decepção do golpe militar. O golpe, se por um lado sufocou as organizações políticas, criou uma efervescência cultural e literária jamais vista, e não por acaso a representação das classes sociais marginalizadas tornou-se a tônica desta geração. Alguns, como Carlos Heitor Cony, seguiram a representação do homem urbano sem dinheiro, perdido no meio da massa (tradição iniciada por Angústia, de Graciliano, e retomada brilhantemente por Dyonélio). Outros, como Antonio Callado, lembraram dos indígenas e voltaram a buscar um instinto de nacionalidade. Até Clarice Lispector, de uma prosa mais intimista, pôs em cena a pobre nordestina Macabéia no seu derradeiro romance, A hora da estrela. Mas é a prosa de Rubem Fonseca que transforma o marginalizado em marginal e chama a atenção pela violência extrema.

Notabilizando-se, numa época de crescente censura geral, pelo desbragado vocabulário, Rubem Fonseca, porém, transformou-o em elemento natural ao meio em que situa suas personagens, pois que o conto é instrumento de uma análise, e é esta análise que interessa ao escritor. (HOHLFELDT, 1988, p. 168)

Roberto Schwarz, em 1983, já uma fase agonizante da Ditadura que há vinte anos governava o país, nota essa linhagem de preocupação social da literatura brasileira e organiza a coletânea Os pobres na literatura brasileira. Com artigos de pesquisadores importantes como Marisa Lajolo, Alfredo Bosi e Haroldo de Campos sobre diversos ícones da literatura brasileira como Monteiro Lobato, José de Alencar, Castro Alves e Simões Lopes Neto, Schwarz procurou demonstrar que a literatura representa, sim, uma realidade social e chega a afirmar, na apresentação da obra, que “basta não confundir poesia e obra de ciência, e não ser pedante, para dar-se conta do óbvio: que poetas sabem muito sobre muita coisa, inclusive, por exemplo, sobre a pobreza” (SCHWARZ, 1983, p. 7).

É dentro desta linhagem que gostaríamos de inserir o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997 mas que ganhou fôlego e chegou a ser dos mais vendidos em sua segunda edição, de 2002, feita em decorrência do sucesso do filme homônimo, filme este dirigido por Fernando Meirelles e que disputou quatro estatuetas no Oscar.

O romance teria surgido de uma provocação do próprio Schwarz: Paulo Lins, então estudante universitário e morador da Cidade de Deus, ganhou uma bolsa da socióloga Alba Zaluar para desenvolver um projeto de antropologia sobre a favela, utilizando-se de seu fácil acesso aos moradores. A pesquisadora queria que Lins escrevesse um texto antropológico ou sociológico, mas o rapaz disse que isso não escreveria, no máximo um poema:

“Fiz um poema, demorei três meses para fazer, e ela mostrou ao Roberto Schwartz, aqui em São Paulo. Ele ligou pra mim, fiquei todo contente, “pô, o Roberto ligou pra mim”, era um crítico, eu estava na faculdade, já tinha lido quase a obra toda dele, na faculdade você é obrigado a ler o Roberto. E ele perguntou: “Permite publicar o poema na revista do Cebrap?” Publicou o poema e deu o aval pra eu escrever um romance. Aí, minha vida complicou. Escrever um romance não é brincadeira, não.” (LINS, 2003, Online)

O resultado é uma obra que, segundo Schwarz (1999), merece ser saudada como um acontecimento, um romance que “parte da envergadura e da disposição ousada à parceria com a enquete social” (p. 168) capaz de representar uma sociedade que está criando “mais e mais ‘sujeitos monetários sem dinheiro’. O seu mundo é o nosso, e longe de representarem o atraso, eles são resultado do progresso, o qual naturalmente qualificam” (p. 171).

O enredo do filme é muito semelhante ao do romance nas ações principais, mas no romance o narrador é em terceira pessoa e em nenhum momento as cenas saem da favela – não há jornalistas, por exemplo –, o que permite a criação de um mosaico de personagens e situações diversas onde a extrema violência é constante, tornando o livro ainda mais pesado.

Dividido em três partes, começa com a história de Inferninho quando o local ainda é apenas um conjunto habitacional criado pelo Governo. Na primeira cena, o bandido atira numa bola, interrompendo uma partida de futebol, e assalta um caminhão de gás. O narrador aos poucos apresenta diversas personagens, entre elas os policiais e o bando de Inferninho, que decide fazer um grande assalto num motel. É quando aparece também o garoto Inho, criança que “gostava de ser bandido, tinha sede de vingança de alguma navalhada que a vida fizera em sua alma” (LINS, 2002, p. 64).

A segunda parte se chama “A história de Pardalzinho”, mas na verdade é onde a liderança e vilania de Inho começam a aparecer: depois de fazer um pacto com Exu e mudar seu nome para Zé Miúdo, toma à bala as principais bocas de fumo da favela e inaugura um regime de violência jamais visto, com mortes a sangue frio e estupros de mulheres da própria favela. Em um destes estupros, José, homem íntegro que servia o exército e mantinha a noiva virgem para depois do casamento, é obrigado a ver o bandido estuprá-la em sua frente e, por vingança, se junta ao maior inimigo de Zé Miúdo, iniciando uma grande guerra entre as gangues: “depois de um mês, os jornais diziam que o número de mortes em Cidade de Deus era maior do que o da Guerra das Malvinas no mesmo espaço de tempo” (p. 356). Entre as mortes se contará mais tarde a de José e Zé Miúdo, mas no lugar da paz surgem novos meninos do tráfico, meninos forjados pela guerra e criados sob o terror de Miúdo, meninos talvez ainda mais violentos que este.

Como romance de fôlego, Cidade de Deus tem sido estudado a partir de muitos aspectos, mas o que gostaríamos de chamar a atenção neste artigo é a forma da representação linguística do discurso dos marginalizados da favela, uma representação completamente diferente da que é feita do discurso do narrador:

Ao verem os corpos boiando, perguntaram a Miúdo o que estava acontecendo.
– Veio fazer pedido, veio fazer pedido? Não tem pedido, não! Não tem pedido, não! Tá de ferro aí? Tá de ferro aí? – perguntou Miúdo.
– Tamo, mas vinhemos numa de paz.
– Paz é o caralho, rapá! Me dá os ferro aí! Me dá os ferro aí!
Os dois entreolharam-se, colocaram a mão direito na parte de trás da cintura, olhavam firme nos olhos de Miúdo, que ao escutar o engatilhar de uma das armas passou fogo nos dois e berrou para Camundongo Russo:
– Joga lá no rio, joga lá no rio!
(...)
A chuva tomou novo impulso, seus pingos ricocheteavam nos telhados como rajada de metralhadora. A água lavou as manchas de sangue na beira do rio, apagou as velas em torno do corpo de César Veneno.
– Mas não tem portância se tudo que vem do céu é sagrado! – disse sua mãe depois de rezar um terço e desistir de manter as velas acesas. (LINS, 2002, p. 194)

Note que, quando o travessão inaugura o discurso das personagens, a linguagem culta do narrador dá lugar a uma tentativa de representação da linguagem falada, mas uma linguagem repleta de “erros” morfológicos e sintáticos: “tamo” no lugar de estamos, ainda que se possa considerar uma variação de “tá”, já corrente mesmo na escrita; “vinhemos”, no lugar de viemos; “me dá”, numa já conhecida variação sintática do falar do brasileiro; “rapá”, ao invés de rapaz; “portância”, numa corruptela do vocábulo “importância”. Por outro lado, o narrador usa termos como “ricocheteavam”, palavra não apenas rara na oralidade como impensável na boca de uma de suas personagens, e construções morfológicas e gramaticais como a de “entreolharam-se”, além de “está” e “para” ao invés de “tá” e “prá”.

Este tipo de construção filia-se “à tradição que atribui ao domínio da escrita um elemento de distinção social, que é na verdade um elemento de dominação por parte dos letrados sobre os iletrados” (BAGNO, 2001, p. 133). O narrador, conhecedor das normas cultas da gramática normativa, parece ter necessidade de demonstrar todo seu leque lingüístico ao usar termos complexos e construções sintáticas de acordo com a gramática normativa, enquanto as personagens são representadas como falantes, reproduzindo assim também sua ordem social.

São os sem-língua: é claro que eles também falam português, uma variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que no entanto não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal – por isso podemos chamá-los de sem-língua. (p. 16-7)

Do ponto de vista literário, estamos diante do que Bakhtin (2004) chama de discurso direto esvaziado, em que o contexto narrativo é construído de tal forma que a caracterização objetiva do herói lança espessas sombras sobre o seu discurso: “o peso semântico das palavras citadas diminui, mas, em compensação, sua significação caracterizadora se reforça, da mesma forma que sua tonalidade ou seu valor típico” (p. 166). Bakhtin usará como analogia para explicar este tipo de discurso o uso da maquilagem, da roupa e das atitudes de uma personagem cômica no palco que já nos põe prontos a rir antes mesmo de apreender o sentido de suas palavras. Assim, a representação linguística do português falado pelas personagens em oposição ao português impecável e erudito do narrador é uma forma de esvaziar não apenas o discurso como as personagens, e antes mesmo de apreendermos o sentido da fala já a rejeitamos, senão pela construção narrativa, pela representação linguística.

Cândido (2004), em belo ensaio sobre a personagem no romance, considera-a como um dos três elementos centrais do desenvolvimento novelístico, e mais ainda, porque a personagem representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor. Adiante, marcará a importância do narrador, ou do autor, no desenvolvimento da personagem, pois o leitor nada mais tem dela do que alguns elementos físicos ou espirituais por força indicativos, para concluir que “a composição estabelecida atua como uma espécie de destino, que determina e sobrevoa a vida de um ser; os contextos adequados asseguram o traçado convincente da personagem, enquanto os nexos frouxos a comprometem, reduzindo-a à inexpressividade dos fragmentos” (p. 79).

Por essa leitura podemos ver o esvaziamento do discurso direto das personagens como um esvaziamento das próprias personagens, uma redução do peso destas na obra e, conseqüentemente, no mundo real, o que ajuda a distanciar o leitor daquele contexto social, criando um fosso entre o lar confortável do que lê e as favelas perigosas dos que falam. Essa concepção está de acordo com a ideia de Bakhtin de que “o fim que o contexto narrativo procura alcançar é particularmente importante” (p. 153), o que nos faria pensar que a criação desse fosso lingüístico e existencial seja importante para o efeito que a obra pretende causar.

Neste ponto, parece importante rever como alguns dos autores desta que chamamos uma tradição de representação social no Brasil lidam com a questão linguística, pois não se pode negar ser esta uma questão complicada para o narrador: por um lado o Brasil é repleto de variações linguísticas regionais e sociais, variações que se afastam da considerada norma culta à medida que as populações não têm acesso à educação formal, como o caso dos moradores da Cidade de Deus do tempo do romance, e por outro lado é fundamental que o narrador crie “sentimento de verdade, verossimilhança” (CÂNDIDO, 2004, p. 55) nas personagens de ficção, sob pena de comprometer a verossimilhança da própria obra.

Aluísio Azevedo, no já citado O Cortiço, opta pelo narrador em terceira pessoa e também recheia o romance com diálogos, mas as falas são transcritas com tamanha correção gramatical e sintática que por vezes parecem superficiais, como quando brigam João Romão e a mulher e ele diz: “E o que você tem com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar satisfações! Meta-se lá com a sua vida!”. Difícil imaginar que num contexto social como aquele, numa situação tensa como a do casal o pobre João Romão usaria a forma proclítica e o pronome “lhe”.

Ciente desta dificuldade que é representar o desempenho lingüístico do outro, Machado de Assis abandona a primeira pessoa de Memórias Póstumas – e que usaria também nos três romances seguintes – para contar a história de Quincas Borba. O motivo deste retorno à terceira pessoa não pode ser outro senão escapar da armadilha de ter de optar entre reproduzir os eventuais erros sintáticos e lingüísticos de Rubião ou deixar o romance com ar artificial. Armadilha que também Clarice Lispector procura escapar ao escolher um narrador letrado para representar a pobre, feia e nordestina Macabéa, narrador este que pontuará a narração da breve história da mulher com sua angústia de ter de representá-la em palavras que sejam fiéis a sua pobre e curta vida: “a palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela” (LISPECTOR, 1998, p. 20).

Outra é a solução de Graciliano Ramos, que também se utiliza da terceira pessoa em Vidas Secas mas mantém seu campo semântico dentro do contexto das personagens. Como elas dialogam pouco, não precisa representar tais diálogos com outra linguagem senão a que ele usa na narração, o que deixa a impressão de que “o narrador que, na aparência gramatical do romance de terceira pessoa, sumiu por trás das criaturas, na verdade apenas deslocou o fatum do eu para a natureza e para o latifúndio” (BOSI, 1994, p. 403).

Cândido (2004), ao mesmo tempo em que fala da necessidade de verossimilhança (e aqui dizemos verossimilhança também linguística), lembra que uma personagem não pode ser simplesmente transplantada da realidade, primeiro porque é impossível captar a totalidade do modo de ser duma pessoa, segundo porque neste caso se dispensaria a criação artística e terceiro porque “mesmo se fosse possível, uma cópia dessas não permitiria aquele conhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção” (p. 65). Desta forma, a personagem precisa ser recriada, e recriar a personagem é também recriar, reconstruir o seu discurso, solução de Simões Lopes Neto em seus Contos Gauchescos e solução que transformaria em obra-prima o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Ao recriar a fala do sertanejo a partir de neologismos, construções sintáticas variadas e expressões regionais, o autor se livra do preconceito ao representar aquela voz como diferente, sim, da língua culta do seu leitor, mas não inferior a ela. Pelo contrário, representa-a de forma tão complexa que a leitura do livro torna-se um enorme desafio.

Grande Sertão: Veredas e as novelas de Corpo de Baile incluem e revitalizam recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metomínias, fusão de estilos, coralidade. Mas como todo artista consciente, Guimarães Rosa só inventou depois de ter feito o inventário dos processos da língua. (BOSI, 1994, p. 430)

Caminho semelhante escolheria Rubem Fonseca para o já célebre conto “Feliz Ano Novo”, em que toda a história é narrada pelo líder do grupo que invadirá uma casa rica na noite de reveillon, assaltando, matando e estuprando. Não há travessões marcando diálogos, as falas dos demais personagens aparecem em novo parágrafo com poucas marcações por parte do narrador e seguem a estrutura linguística do todo. Vamos comparar uma construção desta obra com uma de Cidade de Deus.

Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos. (FONSECA, 2001, p. 430)

– Mexe, mexe... rebola bonito...
Mesmo chorando, movimentava o quadril. O namorado fechou os olhos. Cansado daquela posição, o estuprador fez a loura deitar-se no chão, deitou-se por cima dela e meteu com vontade, parava os movimentos para não gozar, chupou-lhe os seios violentamente, sugou-lhe os lábios, a língua e mandou que ela ficasse de quatro. (LINS, 2002, p. 308)

Afora a brutal violência de ambas as cenas, percebe-se no narrador de Cidade de Deus um léxico variado, palavras como “quadril” misturadas com “meteu” e novamente a construção proclítica, em “deitar-se”, “deitou-se” e “sugou-lhe”, enquanto em “Feliz Ano Novo” os termos seguem o contexto da cena e das personagens, como “papar”, “murros nos cornos” e “executada”, preservando, entretanto, a construção sintática e ortográfica corretas – inclusive com concordância nominal em “murros nos cornos”.

Ocorre que Rubem Fonseca usa no narrador a linguagem das personagens representadas na obra, como Bakhtin (2004) considera o mais comum. Ainda que o discurso do narrador seja mais individualizado, colorido, para o lingüista “ele não pode opor às suas posições subjetivas, um mundo mais autoritário e mais objetivo” (p. 151). Desta forma, ainda que não seja nossa intenção propor uma solução ou ensaiar uma poética, parece que teria sido mais adequado que o autor de Cidade de Deus adotasse a narração em primeira pessoa (como, lembre-se, é no filme, onde o menino Busca-Pé costura a história), pois aí a representação escrita de uma variação linguística diferente da nossa, do leitor, da norma culta, poderia até causar estranhamento, mas seria a lógica própria da obra e não estaria competindo dentro da própria obra com seu contrário, o discurso do narrador em linguagem culta e rebuscada.

Como lembra-nos Bagno (2001), não existe nenhuma variedade nacional, regional ou local “melhor”, “mais pura”, “mais bonita” ou “mais correta” que outra, toda variedade atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam. Assim, “o problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o quê. Neste caso, o preconceito lingüístico é decorrência de um preconceito social” (p. 43).

Imagine, por exemplo, se um rapper quisesse fazer uma música para sua comunidade sobre a vida da classe média e optasse pelo uso do discurso direto para as falas dos jovens de classe média. Possivelmente a letra da música (não a execução da música cantada) seria ou toda escrita dentro da gramática normativa – ainda que o autor viesse a cometer falhas haveria um revisor e ele aceitaria as revisões – ou toda com a linguagem da sua comunidade, jamais ele representaria o jovem da classe média com a gramática normativa e sua comunidade, ele, o narrador, com a linguagem das ruas. O que até poderia fazer, e seria tão legítimo quanto dizer que uma mãe da Cidade de Deus fala “portância” e não “importância”, é representar o discurso do jovem da classe média com todas as gírias e variações que lhe são peculiares, algo como: “aí, tipo assim, meu, ele pegô a mina e fez a maior pressão pra ela nos dá a real”.

Desta forma, acrescentar às enormes diferenças entre os moradores da Cidade de Deus e os leitores de um romance um fosso lingüístico artificialmente criado é, pelo menos, um prejuízo estético para a obra, se não um problema ético. Não é porque Pardalzinho fala “mermo” ou “vinte trouxa” que ele tornou-se melhor amigo do bandido Zé Miúdo, nem porque o tal bandido fala “pros cara” ou “cumpádi” que tornou-se o mais temido da cidade. O domínio da norma culta, já diria Bagno, de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida, aos programas governamentais e, em última instância, à justiça social, justiça essa que permita a um jovem de Cidade de Deus estudar, crescer longe das drogas e da violência com a certeza de que suas atitudes serão recompensadas pela sociedade como um todo. Certeza que aquela geração retratada por Lins sabia ser ilusão. E a de hoje, talvez, até a ilusão tenha perdido.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 9ª ed.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 42 ed.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. São Paulo: Objetiva, 2001. p. 334-340.
HOHLFELDT, Antonio Carlos. Conto brasileiro contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. 2 ed.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. 2 ed.
LINS, Paulo. Entrevista explosiva. Caros Amigos, Maio de 2003. Disponível em: http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed74/entrevista_paulolins.asp Acesso em 29 julho 2006.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
SCHWARZ, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SCHWARZ, Roberto. Seqüências brasileiras. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

 

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