Crônicas e Artigos
Cartas a um jovem escritor
Marcelo Spalding
O título é bom, ótimo, mas não é meu nem da minha coluna, e sim de um interessante livro escrito por Mario Vargas Llosa, Cartas a um jovem escritor(Elsevier, 2006, 188 págs.). A obra faz parte de uma coleção que vai desde Cartas a um jovem chef até Cartas a um jovem herdeiro, passando por um livro com cartas a jovens políticos escrito por Fernando Henrique Cardoso. Mas esqueçamos o caráter comercial da coleção, que não prejudica o ensaio de Llosa e talvez até explique alguns comentários superficiais.
Já nas primeiras páginas, o romancista pergunta: por que dedicaria seu tempo a algo tão efêmero e quimérico ? a criação de realidades fictícias ? aquele que está intimamente satisfeito com a realidade real, com a vida que leva? "A ficção", dirá então Llosa, "é uma mentira que encobre uma verdade profunda, é a vida que não foi, a que os homens e mulheres de determinada época quiseram levar e não levaram, precisando, por isso, inventá-la".
Adiante, o peruano irá lembrar a frase de Flaubert de que a escrita é uma bela vocação que nos absorve a tal ponto que não escrevemos para viver, e sim vivemos para escrever, para logo a seguir afirmar que "o escritor se alimenta de si mesmo", ponderando, porém, que "embora o ponto de partida da invenção de um romancista seja o que ele viveu, esse não é, nem pode ser, o ponto de chegada".
Particularmente, como jovem escritor e, mais ainda, com a mínima autoridade de professor de oficina de criação literária de uma universidade aqui de Porto Alegre, digo que o livro já vale por esses dois capítulos iniciais. Não que as considerações de Llosa sejam novas, mas ele começa as cartas com a pergunta mais sensível àqueles que escrevem: por que escrever? Escreve-se por vocação, escreve-se por vaidade, escreve-se por ganância? Para que escrever, criar realidades em vez de vivê-las, pôr mais um livro no mercado e batalhar insanamente para que outros o leiam?
Lançadas as perguntas, Vargas Llosa não as responde, prefere dar conselhos mais técnicos e objetivos, focando-se sempre na construção do romance, o que não é comum, pois normalmente as poéticas contemporâneas são feitas para o conto. Ao longo das doze cartas, abordará o estilo, o narrador, o espaço, o tempo, os níveis de realidade, as guinadas, o subtexto, a verossimilhança e outros conceitos teóricos que todo escritor, mesmo que rejeite a academia, deveria conhecer, pois nada mais são do que suas ferramentas de trabalho.
Sempre citando exemplos, de Joyce a Monterrosso, nos mostra como cada elemento formal interfere sobremaneira no "poder de persuasão" de um texto, tornando-o mais ou menos inesquecível. Não se pode separar forma e conteúdo, insistirá o romancista, e se romances como Dom Quixote e Moby Dick são bons é graças à eficácia de sua forma, pois a maneira como se conta e o que se conta, nesses romances, formam uma unidade indestrutível.
Como o leitor já deve ter percebido, Vargas Llosa se concentrará no texto, na concepção de romance como arquitetura, esquema narrativo, chegando a afirmar que nenhum romancista obteve sucesso fulminante, todos foram frutos de anos de disciplina e perseverança. E nesse sentido é interessante notar como a concepção de literatura, e, por conseguinte, do papel do escritor, mudou ao longo de cem anos.
Entre 1903 e 1908, Rainer Maria Rilke, considerado o melhor poeta de língua alemã do século XX, trocou cartas com um jovem que pedia juízo sobre sua obra e essas cartas hoje estão publicadas em Cartas a um jovem poeta (livro que não é mencionado em nenhum momento por Vargas Llosa mas que provavelmente serviu de inspiração para os organizadores da coleção Cartas a um jovem...). Em suas cartas, Rilke começa dizendo-se impedido de comentar a obra alheia, mas sugere que falta personalidade ao poeta, chegando a perguntar se ele TEM mesmo que escrever. A partir daí, passa a dar muitos conselhos para o jovem Kappus, todos eles relacionados à vida do rapaz, insistindo que ele deve viver mais, aprender com a tristeza, ler menos crítica literária. Não há uma carta sequer dedicada às questões formais, como em Vargas Llosa.
Mais do que opção estética de um e outro, esse fato demonstra como a literatura transformou-se ao longo de um século, apagando muito da influência do romantismo e recebendo muita influência da sociedade industrial, da cultura de massa, da tecnologia crescente. Já não se fala em inspiração, muito menos em musa-inspiradora, mas em trabalho, muito trabalho, disciplina, atenção. Mais do que criador, o escritor contemporâneo deve ser um construtor, um arquiteto capaz de aliar sensibilidade artística e estruturação quase matemática.
Não que o estilo não seja importante, pelo contrário. Vargas Llosa dedicará um capítulo inteiro ao tema, onde afirma que "não é possível ser um romancista sem ter um estilo coerente e necessário, e visto que você deseja tê-lo, busque e encontre o seu estilo lendo bastante, mas (...) procure fugir das reproduções mecânicas dos padrões e ritmos da escrita de terceiros, pois se você não for capaz de desenvolver um estilo pessoal, aquele que mais convém ao que você pretende contar, suas histórias dificilmente conseguirão se embeber do poder de persuasão que as fará viver". Mas esse estilo não nasce de uma hora para outra, é uma conquista. E precisa ser lapidado.
Por essas e outras reflexões, nada como levar para as férias esse livrinho de Vargas Llosa. Talvez muitos cheguem ao final constrangidos pelo que até então tenham escrito, mas também isso é parte do amadurecimento profissional de um escritor, inevitável àqueles que desejam ir além de leitores-amigos e blogs engraçadinhos.
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